As vozes podem até parecer de ETs em desenhos animados. Causam estranhamento. Ainda assim, escancaram uma nova moda que está se popularizando entre os brasileiros: o consumo de vídeo e áudio em velocidades diferenciadas, geralmente mais rápido. O sucesso é tamanho que até a Netflix liberou a função, apesar da bronca dos cineastas.

Por trás desta história está uma necessidade crescente de ver mais coisa em menos tempo. Dá para acreditar? O conteúdo disponível na rede já não cabe mais nas 24 horas do dia. Já que o objetivo é acelerar a vida, aceleram-se também os vídeos no YouTube ou os podcasts, num hábito que deve chocar os mais antigos.

Eu mesmo estava por fora desta tendência até fazer uma postagem informal no meu Twitter. Para minha surpresa, a maioria dos leitores já utiliza a função em algum momento da rotina diária… vivendo e aprendendo! Eles colocam o conteúdo em 1,25x ou 1,5x, mas se bobear, podem pular para 3x.

Não encontrei nenhuma pesquisa científica que se debruce sobre o tema. De toda forma, aqui estão os aprendizados coletados pelo Instituto DataThás – não leve a sério, eu acabo de inventá-lo! – para explicar a motivação dos usuários:

  1. Apresentadores demoram demais para passar o recado (o famoso lenga-lenga).
  2. Busca por informações específicas dentro de áudios ou vídeos mais completos.
  3. Possibilidade de consumir mais conteúdo em menos tempo.

O agregador de podcasts Pocket Casts oferece o controle de velocidade há muitos anos. Também foi pioneiro na função que corta os silêncios e respiros dos apresentadores, o tipo de coisa que pode afastar muita gente.

Ele fez o cálculo. Digamos que uma pessoa escute 10 horas de áudio ao longo da semana. Se ela ativar a função, terá 66 minutos a mais de conteúdo. Ou seja, o sistema faz caber mais informações quando modifica a velocidade e corta os intervalos das falas. A diferença é de 11%.

Os mais puristas vão dizer que isso distorce a forma como o conteúdo foi concebido. Eu mesmo tendo a pensar assim. Mas, como não está de bobeira, a Netflix se antecipa às críticas ao afirmar que mesmo no tempo do DVD (quem lembra?) já era possível pular quadros pelo controle remoto.

É bem verdade, mas eu lembro e posso dizer que não costumávamos ver o filme inteiro em velocidade acelerada. A companhia de streaming diz que este é um pedido antigo e frequente dos assinantes. E que dá mais flexibilidade para quem está com a fatura em dia.

Também é verdade. No fim das contas, o usuário decide exatamente como quer curtir aquela série, aquele filme, aquele programa em áudio.

Há um motivo adicional: aumentar a acessibilidade das produções. O áudio mais rápido facilita a vida das pessoas com deficiência auditiva. Parcela deste público está acostumada com sintetizadores de voz que leem o conteúdo da tela a 200 km/h. Por outro lado, o som mais lento cria oportunidades para os indivíduos que normalmente têm dificuldade para compreender a fala, além de ser um incentivo para quem está aprendendo um novo idioma.

A Netflix reconheceu as pedradas que levou dos maiorais de Hollywood. Tanto que não é possível deixar permanentemente em velocidade acelerada – é preciso habilitar este ajuste sempre que der play num novo conteúdo. Ela também alega que pesquisas foram feitas e que os participantes não relataram impacto na forma como percebem a qualidade do material.

Trago para a conversa o psicanalista Christian Dunker, professor da USP. Ele explica à coluna que o recurso de aceleração pode até mesmo deixar a pessoa mais irritada, mais sedenta de informação, no que chama de estreitamento entre meios e fins. ”É aquele usuário que vai ficando irritante porque quer ir direto ao que importa, direto ao xis da questão.”

Dunker traç

... a um paralelo com a câmera fotográfica. Para ele, o bom foco é aquele que se movimenta: capta momentos de melhor detalhamento, mas também pode ficar difuso. “É como ir ao Louvre, em Paris, e checar somente cinco obras. Mata completamente a experiência de andar pelo museu.” Acrescento eu: é sempre bom esbarrar em coisa nova, descobrir informações inesperadas.

Seria uma moda passageira? O tempo dirá. Só fico com o pé atrás em relação à crescente ansiedade que estamos vivendo, em especial neste período de quarentena. Ao menos quando o assunto é entretenimento, a ideia é relaxar, aproveitar, curtir as cenas, sentir a emoção daquela história. E não correr para ver antes de todo mundo e postar nas redes sociais.

Este seria um uso bem pobre do nosso tempo livre. Uma competição injustificável.

Em tempo: você pode brincar com estas funções agora mesmo. No campo do áudio, os apps para celular Apple Podcasts, Google Podcasts e Spotify trazem os controles, bem como o Pocket Casts mencionado acima. No campo do vídeo, está no YouTube (web, Android e iOS) e na Netflix (Android).

Thássius Veloso é jornalista especializado em tecnologia, setor que cobre há dez anos. É editor do TechTudo e comentarista da CBN e da GloboNews. Escreve neste espaço de opinião sempre que tem algo relevante a dizer.



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